sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Carta ao Papai Noel


Querido Papai Noel,

Esse ano serei sincera. Quero me confessar. Não fui uma boa menina. Vou começar revelando que na verdade não sou uma menina e sim quase uma balzaquiana. Mesmo assim, fiz muitas maldades.
Odiei todas as pessoas burras a minha volta. Pior, expus suas deficiências e incompetências, principalmente a elas mesmas.
Enfeitei meus dias com comentários sarcásticos que divertiram uns e humilharam outros. E ainda senti orgulho de cada adendo cruelmente original saído do meu cérebro.
Não tolerei as diferenças musicais. Repudiei todos os sertanejos e simpatizantes. Não fui ecologicamente correta. Nem mesmo intencionei ser. Não me preocupei nem um pouco com meus netos. Fiz questão de tomar todos os cafés sem repetir o copo plástico. Dei risada da taxa de mortalidade dos motoboys todas as vezes que eles encostaram no meu retrovisor. Enfim, confortei-me com o sofrimento alheio em muitas situações.
Não, eu não acho isso bonito meu caro Santa. Penso que, o bom velhinho, espécie de divindade e ícone pop do pólo norte, possa talvez perdoar uma simples mortal como eu e até ajudar. Sabe, ando precisando de um psicodisléptico.Alucinógeno,psicomimético, psicometamórfico, essas coisas que não vendem na farmácia, entendeu?
Traz um pouco do que puder. Pode ser cogumelo sagrado, daime, chá de lírio...
Queria começar o ano distorcendo percepções; amando a todos como a mim mesma. Sendo meio assim, uma mistura de Sininho com Smurfete.Uma fofa! Só um pouco menos humana.
Não leve a mal, Papai Noel. O senhor só convive com renas e anões e talvez não me compreenda. Se não vier, eu vou entender. Nem mesmo sei se daria certo. Posso tentar progredir sozinha e sóbria. Feliz Natal!

terça-feira, 24 de novembro de 2009

"E não nos deixeis cair na convenção, amém!"

Não,eu não vou esticar os lábios e curvar os ombros como eles querem. Viver é levantar os braços e mostrar os dentes.
Quero ter a coragem de pular da ponte sem verificar a profundidade da represa. Não me importa que a maioria não pule. Mais um motivo para pular, aliás. Não vou me camuflar por entre as folhas. Não vou fingir ser parte qualquer da floresta. Venham os predadores que já não me importo!Eu só preciso sentir minha alma exposta.
Chega de conselhos. Estou farta de conselhos-padrão. Não há nada pior do que o padrão.
Vou esticar os ombros e relaxar os lábios. E aos possíveis incomodados, eu levanto o dedo. O do meio,é claro.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Vida Rimada

O que posso fazer
se a minha vida tá rimada
a cabeça atordoada
vou vivendo meio dada
com jeito de retardada
não vou agir como culpada
se a morte tá datada.
Como posso quebrar
essa rima tão rimada
metricamente escrachada
a crítica encurtada
convicção dilacerada
lucidez escravizada
é a dor desgovernada
angústia angustiada
atitude vomitada
revolta desfocada
dentro do meu coração.

sábado, 14 de novembro de 2009

Colar de pérolas falsas

Sábado a noite e eu me arrumando. Tudo a primeira vista parecendo perfeito: o vestido, os acessórios, o bronzeado, nada demais. Mas eu não podia sair. Algo me incomodava. Sentia-me trajando uma espalhafatosa fantasia fora do período de carnaval. Qual seria o motivo da sensação?
Olhei e olhei para o espelho. Trajes atuais, dentro do comum, adequados para minha idade, corpo e classe social. Pensei muito mas o que consegui foi só sentir:"o colar de pérolas é óbvio demais".
A princípio não consegui racionalizar a minha conclusão. Depois concordei. O colar de pérolas era óbvio demais porque não contava nada sobre mim e sim o que está na moda. Ele estava me escondendo.
Troquei imediatamente aquele modelo de pérolas falsas que hoje domina as vitrines e os pescoços por um terço antigo,também de pérolas,que guardo na cabeceira da minha cama há anos.
Conferi pela última vez a minha imagem e pensei: "vão achar estranho". Sai feliz. Prefiro ser estranha a ser óbvia.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

"A procura de Bruce..."


Decidi, vou ter outro. Num lampejo de intuição descobri seu nome, Bruce. Agora só preciso encontrá-lo. Como fazer? Ir a uma loja? Um Petshop? Passar o cartão e levá-lo para casa? Não me satisfaria...
Eu quero mais. Uma paixão, um encontro, um amor a primeira vista. Não se compra um filho como se come fastfood. Hei de morrer por esse como morreria pelo outro.
Em meio a devaneios, passo a idealizar Bruce. Tem que ser preto e dourado. Nada de cinza e dourado, mesmo que essa seja a coloração mais comum. É preciso ser rápida e adotá-lo ainda bem novo, antes que coloquem aquelas coisas nas orelhas dele para que fiquem em pé.
Pensando bem, na verdade, eu preferia que já fosse mais velho. Se tiver artrose e não conseguir subir escadas, melhor. Será um prazer carregá-lo todas as noites. Quem sabe, com sorte, eu sinta o mesmo peso em meus braços...
Ele poderia ter a língua protrusa também. Alguns dizem que é um sinal da idade avançada, mas eu acho um charme! Sendo pequeno igual, poderá preencher as roupas que estão guardadas. Queria tanto sentir o mesmo cheiro...
Meu coração se aperta em dúvidas. Como fazer para que ele me olhe do mesmo jeito?
Não, ainda não é hora, Bruce. Vamos esperar até que eu possa aceitá-lo em suas próprias formas.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

"Doutora, acho que sou amaldiçoado"

J.R., 40 anos,esquizofrênico, um dia olhou para mim e disse: "Doutora, acho que sou amaldiçoado". E naquele momento eu senti: "amaldiçoada sou eu com essa coerência, esse pensamento lógico objetivo e abstrato, essa falta de inocência, essa crítica que me afasta dos outros e de mim mesma"; e pensei: "não J.R., não pode haver maldição nessa doença, não nessa patologia que o faz ter olhar transparente e ar afetuoso". Então eu disfarcei os meus olhos molhados e respondi: "o que é isso J.R., você só pode ser abençoado". E tanta foi a minha convicção na resposta que ele acreditou e pareceu aliviado. "A médica não mentiria" deve ter ele pensado, dentro da sua simplicidade. E talvez eu não tenha mentido. Amaldiçoados ou abençoados, nós dois estamos sozinhos.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A Menina

E um dia ela acordou. Despertou da consciência. De súbito, tudo clareou. Entendeu o quanto não entendia!Correu para alertar os outros. Em vão. O pai falava da corrida e a mãe do caminhão. Eles estavam loucos!
Na rua todos atrás do ônibus. E tão pouco sabiam. Papéis nas mãos, alças nos ombros. Meu Deus, eles estavam loucos!
Agora sim ela via!Contavam, contavam...Andavam, andavam...Meu Deus, para onde eles iam?
Falavam, falavam...palavras de tudo vazias. E mascavam, mascavam...sem notar o que faziam. Meu Deus o que eles queriam?
O fato é que alguma coisa eles achavam que sabiam. E a menina eles não compreendiam.
E riam um riso frouxo. Já o da menina era riso de nervoso!Que angústia aquele bando de loucos!
E dançavam uma dança pronta, ensaiada...Ah Meu Deus, ninguem acordava!
E o discurso que decorado!Será que não tinha como desligar da tomada?
E falavam-se e riam-se e carregavam-se e gritavam-se e brigavam-se e almejavam-se. Mas na menina a angústia só crescia.
E choravam-se e planejavam-se e pediam-se e trocavam-se e confortavam-se e machucavam-se. Mas a menina de nada sabia!Ah que mal amada, pensavam!E às vezes ela compreendia. Do tamanho da loucura era o tamanho da alegria. Lucidez era uma dor, um sofrimento, punhalada funda.
Viver não mais podia.
E os bois ruminavam, ruminavam...e as pessoas comiam.
E as galinhas cacarejavam, cacarejavam...e as pessoas falavam.
E a menina se arrastava, arrastava...zumbia, zumbia...esperando que algo a encontrasse.
Ah que imensidão pequena, ela pensava!E às vezes até sorria. Já quase não se importava. Ela apenas ia, ia...
Meu Deus quanta ironia!
Ela achava que mais sabia porque sabia que não sabia de nada. Talvez quem sabe fingir que não soubesse que não sabia de nada?Ah, se ela não soubesse que não sabia...bem fácil ficaria!
Era só rir o riso frouxo e dançar a dança ensaiada e assim enganar que vivia. Ah, ela não mais se via!
A vagar em ciclos, comer petiscos, a tirar o siso, falar de bichos...
A somar as notas, comemorar as bodas, andar sobre rodas...
A ranger os dentes, passar o pente, reclamar que está quente...Meu Deus que decadente!Não é assim que se sente quando não se está dormente.
E enxugar seu pranto e escrever um conto, quem sabe em esperanto...Meu Deus que desencanto!
Viver não mais podia. E por que de fato ela existia?Ah, isso que ela não sabia...
E o que ela mais queria era morrer de filosofia porque no meio da monotonia morrer de amor não poderia.