quinta-feira, 5 de novembro de 2009

"Doutora, acho que sou amaldiçoado"

J.R., 40 anos,esquizofrênico, um dia olhou para mim e disse: "Doutora, acho que sou amaldiçoado". E naquele momento eu senti: "amaldiçoada sou eu com essa coerência, esse pensamento lógico objetivo e abstrato, essa falta de inocência, essa crítica que me afasta dos outros e de mim mesma"; e pensei: "não J.R., não pode haver maldição nessa doença, não nessa patologia que o faz ter olhar transparente e ar afetuoso". Então eu disfarcei os meus olhos molhados e respondi: "o que é isso J.R., você só pode ser abençoado". E tanta foi a minha convicção na resposta que ele acreditou e pareceu aliviado. "A médica não mentiria" deve ter ele pensado, dentro da sua simplicidade. E talvez eu não tenha mentido. Amaldiçoados ou abençoados, nós dois estamos sozinhos.

5 comentários:

  1. Crônica interessante. flui com a ligeireza necessária para esse tipo de encontro improvável: a médica que se procura e o paciente que se entende perdido

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  2. Gostei muito...conseguiu passar verdade em casa palavra escrita.

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  3. Fato ontológico que persegue todos dias as pessoas, mas que poucas fazem questão de enxergar ou tenta lidar...

    Mas acho que após ler esse poema abaixo, sinto-me muito mais leve quanto ao fardo que carrego sozinho, que todos carregamos sozinhos. Fardo este chamado consciência.


    "NÃO: Não quero nada.
    Já disse que não quero nada.
    Não me venham com conclusões!
    A única conclusão é morrer. Não me tragam estéticas!
    Não me falem em moral! Tirem-me daqui a metafísica!
    Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
    Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
    Das ciências, das artes, da civilização moderna!

    Que mal fiz eu aos deuses todos?
    Se têm a verdade, guardem-na!
    Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
    Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
    Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

    Não me macem, por amor de Deus!

    Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
    Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
    Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
    Assim, como sou, tenham paciência!
    Vão para o diabo sem mim,
    Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
    Para que havemos de ir juntos? Não me peguem no braço!
    Não gosto que me peguem no braço.

    Quero ser sozinho.
    Já disse que sou sozinho!
    Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

    Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
    Eterna verdade vazia e perfeita!
    Ó macio Tejo ancestral e mudo,
    Pequena verdade onde o céu se reflete!
    Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
    Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

    Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
    E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!"

    Fernando Pessoa

    Bjs, O.

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  4. Obrigada O. por enriquecer meu blog com esse texto de Fernando Pessoa. Vou dormir mais inspirada.bjos

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